Em megalópoles como São Paulo (21 milhões de habitantes) e Rio de Janeiro (12 milhões), aproximadamente, 43,7[1] e 22,6[2] milhões de viagens, respectivamente, são realizadas diariamente.
Nestas aglomerações, assim como em muitas cidades do Brasil e do mundo emergente, o crescimento desordenado das cidades deu origem a uma organização urbana que afastou – e ainda tem afastado – a população para zonas mais periféricas das cidades. Este tipo de organização é composto, de maneira simplificada, por um centro histórico como um centro de atividades econômicas, onde prédios residenciais perderam seu lugar, e outros polos empresariais de formação mais recente, que tentam mixar os usos (escritórios e residências), porém, com o uso empresarial ainda predominante. Os bairros mais próximos a estes centros são, geralmente, ocupados pelas classes sociais mais altas, que conseguem sustentar a pressão imobiliária das localidades próximas aos centros de atividade. Mais afastada destes centros, a população mais desfavorecida, que muitas vezes possui um trabalho informal e recebe um salário mínimo, acaba sofrendo com o espraiamento urbano, se deslocando para as regiões mais periféricas da metrópole, indo residir cada vez mais longe dos centros de atividade econômica. É justamente esta população que fica mais dependente dos transportes públicos para os deslocamentos diários e pendulares casa-trabalho. Os trajetos podem, em alguns casos, levar 2h30min e obrigar o cidadão a fazer três ou mais baldeações, onerando, significativamente, o orçamento individual e familiar.
No caso de São Paulo e do Rio Janeiro, nos últimos anos foram implantadas algumas medidas que trazem vantagens para estes usuários que têm despesas elevadas com transporte coletivo. Em São Paulo, por exemplo, a instauração do Bilhete Único (BU), em maio de 2004, permitiu que os usuários passassem a pagar uma só tarifa e realizar até três baldeações, ou quatro viagens, no sistema de ônibus municipais num período de 3 horas. Em dezembro de 2005, o sistema metroferroviário também passou a aceitar o BU e o usuário se beneficia, atualmente, de uma redução de 13% na tarifa na segunda perna de sua viagem. Ainda na RMSP, existe o Bilhete Ônibus Metropolitano (BOM), aceito no ônibus intermunicipais e no sistema metroferroviário.
No Rio de Janeiro, o Bilhete Único Carioca (BUC) foi implantado em 2010, sendo aceito nos ônibus municipais da cidade do Rio de Janeiro, no VLT e no BRT, e permitindo um transbordo no período de 2h30min. Já o Bilhete Único Intermunicipal é destinado apenas a usuários que comprovem renda mensal inferior a R$ 3205,20 e é permitido em ônibus intermunicipais, no metrô, nos trens, nas barcas e no BRT. Não existe integração tarifária entre trens, metrô e o sistema de ônibus municipal.
Apesar destas evoluções e acordos que visam tornar o sistema de transporte coletivo mais atraente para os usuários, observa-se que o transporte público ainda sofre para ganhar atratividade em relação ao transporte individual. Em parte, pode-se atribuir este fato ao crescimento econômico brasileiro nos últimos 15 anos e o consequente acesso facilitado ao automóvel e à motocicleta próprios. Porém, existem, ainda, margens políticas, operacionais e financeiras para se melhorar o sistema de transporte público brasileiro e o objetivo deste texto é, justamente, mostrar algumas lacunas em que se pode atuar, evidenciando algumas vantagens e desvantagens, a fim de diminuir o peso do transporte público no orçamento familiar e melhorar a atratividade do sistema.
O papel da tarifa do transporte público
A política tarifária do transporte público deve suprir três funções principais: (1) financiar o sistema de transporte coletivo, (2) refletir uma política social defendida pela administração pública e (3) ser o vetor da evolução das práticas de mobilidade.[3] Porém, a definição do valor da tarifa e de uma política tarifária, a fim de contemplar todos os objetivos, não é um exercício trivial.
Primeiramente, o sistema precisa de capital para seu funcionamento e a tarifa paga pelo usuário pode cobrir totalmente ou parcialmente este custo. No Brasil, em grande parte dos sistemas de transporte urbano, o cálculo da tarifa do transporte público se baseia no custo do funcionamento do sistemasendo o usuário a única fonte de recursos. Sendo excessivamente onerado por isto, o usuário deixa de utilizar o transporte, criando um círculo vicioso: quanto menor o número de passageiros, mais cara se torna a tarifa, diminuindo o número de passageiros mais uma vez. Este ciclo é potencializado quando constatado que os sistemas de transporte são, em muitos casos, ineficientes ao não se explorar a complementariedade dos diferentes modos de transporte, colocando-os, por outro lado, em competição num mesmo itinerário.
O caso da região parisiense é mundialmente conhecido pelo fato de que a receita de tarifas corresponde a somente 28% do custo de funcionamento do sistema.[4] As outras fontes são oriundas de subsídios dos órgãos públicos, receitas acessórias e, sobretudo, dos empregadores através do versement transport. Trata-se de um imposto cobrado sobre a folha de pagamento das empresas e estabelecimentos públicos de 11 ou mais salariados que pode variar de 0,55%, em pequenas aglomerações urbanas, a 2,85%, na região parisiense.[5] Uma das justificativas para este tipo de imposto é que o salariado vai trabalhar graças ao sistema de transporte de qualidade, então as empresas têm que contribuir com operação e manutenção do mesmo.
Em seguida, a tarifa deve ser justa para com todos os usuários do sistema, promovendo uma equidade social e territorial da aglomeração urbana e facilitando o acesso a serviços, comércios, lazer. No entanto, nota-se que as gratuidades assumem uma parcela importante no número de viagens no transporte público. Elas são concedidas, em sua maioria, segundo o estatuto social da pessoa (estudante, idoso, mobilidade reduzida, militar…) e não são assumidas pelos operadores. Isto significa que um usuário de baixa renda financia a passagem de um estudante ou um idoso rico que tem condições de pagar pelo seu transporte, por exemplo. Em 2016, as gratuidades representaram 19% do total de viagens na RMSP[6] e 18% no sistema de ônibus municipais carioca[7]. Neste sentido, a concessão de gratuidade baseada na renda da família pareceria mais justa.
Por último, mas não menos importante, a tarifa deve incentivar o uso do transporte público em detrimento do privado, diminuindo, assim, as emissões de gases poluentes e garantindo seu papel ambiental. Contudo, encontrar o equilíbrio para estimular a mudança do modo privado para o coletivo é bastante complicada. Se a tarifa é muito elevada, ela desestimula o uso do transporte público pelo mais pobre, mas permite uma melhor qualidade de transporte, o que a priori atrai os usuários de automóveis ou motocicletas. Porém, se a tarifa é muito baixa, é impossível atingir o equilíbrio financeiro, o que reduz a qualidade do serviço e afasta os usuários ricos.
Existem dispositivos que podem garantir o financiamento cruzado do transporte privado para o público e modos alternativos e complementar o orçamento destes. Fortaleza é uma cidade que já possui uma política neste sentido, colocada em prática recentemente. A Prefeitura decretou, em junho de 2018, uma lei que destina toda a arrecadação dos estacionamentos Zona Azul da cidade para políticas cicloviárias (implantação de estações do sistema de bicicletas compartilhadas, manutenção e ampliação de ciclovias/ciclofaixas).[8] Outro exemplo é a CIDE-Combustíveis (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico), imposto sobre combustíveis arrecadado pela União e repassado parcialmente aos níveis estadual e municipal, que, por lei, serve para o financiamento de programas de infraestrutura de transporte público. Porém, um estudo do IPEA[9] mostra que a CIDE poderia servir para o financiamento da operação do transporte público urbano, o que refletiria em redução da tarifa, impactando diretamente o usuário do transporte coletivo.
Títulos de transporte ajudam a reduzir o peso do transporte público no bolso dos usuários
Talvez o Brasil seja um dos únicos países a estabelecer o transporte como um direito social na sua Constituição, incluído em 2015[10]. A justificativa da relevada importância se baseia no fato que o transporte é, de fato, o único meio de ter acesso a outros serviços urbanos básicos, como educação, trabalho, saúde e lazer[11]. Porém, a inclusão do transporte como um direito básico não garante ao cidadão a melhoria imediata dos sistemas de transporte público. Políticas públicas eficientes devem ser criadas para efetivar este direito, aumentando a acessibilidade da população ao serviço. Notadamente, as altas tarifas dos serviços de transporte público são incompatíveis com a renda das classes sociais mais pobres, representando um verdadeiro freio para a integração da sociedade.[12]
Neste contexto, sendo o transporte indispensável para o dia-a-dia, sempre se questiona: quanto os gastos com transporte devem representar na renda de um indivíduo ou de uma família? O Banco Canadense Desjardins recomenda que os gastos com transporte devem ficar entre 10 e 15% da renda familiar mensal.[13] No Brasil, em 2008-2009, os gastos com transporte (privado e público) representavam, em média, 15,8% da renda familiar. Tal número pode variar de 13,8% nas classes mais ricas até 21,8% nas classes menos abastadas.[14] Em termos de despesas, o transporte representava 19,6% das despesas totais do domicílio, atrás apenas das despesas com habitação.[15] Na França, esta porcentagem foi de 13,7% em 2016[16].
Já para um indivíduo, segundo CAF[17], este valor não deveria ultrapassar 6% do salário mínimo, considerando 25 dias úteis por mês e duas viagens por dia. Neste raciocínio, vê-se que essa porcentagem pode variar significativamente de acordo com a cidade. A tabela a seguir apresenta uma comparação da porcentagem do gasto mensal com transporte público em relação ao salário mínimo para São Paulo, Rio de Janeiro e capitais latino-americanas e europeias.
Tabela 1 – Porcentagem do gasto com 50 viagens unitárias em relação a um salário mínimo.[18] [19]
Destes números, pode-se concluir que o trabalhador brasileiro, que ganha seu salário por prestar um serviço, acaba usando uma grande parcela do mesmo para o deslocamento ao trabalho. Uma situação contraproducente, até pelo fato de o trabalhador não se motivar a ir trabalhar. Com a implantação do Vale-Transporte, o empregador contribui nos gastos com transporte de seus empregados, mas ele pode descontar até 6% do salário de seu funcionário para que o benefício seja adquirido[22], o que pode não ser vantajoso ao empregado dependendo do seu gasto com transporte.
Mas, então, o que poderia ser feito para melhorar a situação nas metrópoles brasileiras?
Uma possível maneira de aliviar o bolso dos brasileiros seria a adoção de títulos de transporte temporais – por dia, semana, mês ou ano -, uma realidade em diversos sistemas de transporte público há décadas. Em posse de um título destes, o usuário pode usar, de maneira ilimitada, qualquer modo de transporte que compõe a rede. Além de significar uma redução do peso do transporte público no orçamento familiar, o título temporal também ajuda a promover a intermodalidade de um sistema com modos de transporte que se complementam, permitindo o usuário utilizar o sistema quantas vezes e como quiser, sem custo adicional. Assim, o usuário fica livre para utilizar a melhor combinação de modos para seu trajeto, independente do número de transferências necessárias.
Todavia, um título de transporte representa uma redução da tarifa média arrecadada, do fato que um usuário realiza mais viagens por um valor único. Isto gera muitos questionamentos sobre a sustentabilidade financeira do sistema. Em contrapartida, a redução da tarifa engendra um desencadeamento de efeitos que acaba compensando a menor arrecadação média, como ilustrado no esquema abaixo. Ela aumenta a atratividade da oferta de transporte público, gerando aumento no número de usuários, o que compensa a redução tarifária concedida. A implantação do BU em São Paulo prova que é possível promover a integração tarifária e manter o nível de receitas[23].
No Brasil, a RMSP é única metrópole a possuir um passe temporal, diário ou mensal, integrando o sistema metroferroviário e o sistema de ônibus municipais de São Paulo, mas o número de embarques é limitado a 10 por dia. Os ônibus metropolitanos e de outros sistemas municipais da região metropolitana não estão inclusos.
Na tabela a seguir, é apresentada uma comparação dos valores das tarifas unitárias e dos passes temporais de diferentes cidades, assim como o número de embarques a partir do qual se torna vantajoso o passe mensal. Trata-se de uma análise simples baseada na hipótese que os usuários realizem somente o trajeto domicílio-trabalho em transporte público.
Tabela 2 – Número de viagens para rentabilizar o título de transporte.
Contudo, deve ser lembrado que o índice de mobilidade (número de viagens diárias/habitante) varia de cidade para cidade. Por exemplo, em São Paulo, este índice era de 2,18 viagens/dia/habitante em 2012[24]. Já em Paris, este número era de 3,87 viagens/dia/habitante em 2010[25]. Assim sendo, o passe mensal parisiense é ainda mais vantajoso para um usuário médio do sistema público de transporte, pois, naturalmente, ele usa o transporte público mais vezes num mês que o usuário paulistano. Ou seja, levando em conta estes índices, um usuário médio de Paris rentabiliza seu passe em 10,3 dias enquanto o de São Paulo precisa de 22,5 dias.
Consultando outras das principais redes de metrô latino-americanas (Cidade do México-MEX, Santiago-CHI e Buenos Aires-ARG), observa-se que nenhuma delas possui um passe mensal ilimitado. Cabe citar que Buenos Aires possui uma política de descontos na tarifa, por patamares, dependendo do número de embarques por mês na rede metroviária, como apresentado na tabela ao lado.
Desafio complexo e de longo prazo
Atualmente, um dos grandes desafios é encontrar o valor de tarifa equilibrado que consiga atender aos três papeis de uma política tarifária. Assim sendo, no modelo em que os transportadores são remunerados pela tarifa dos usuários, a otimização da rede refletiria numa redução da tarifa diretamente proporcional às economias feitas pelos transportadores. Esta seria uma etapa de curto-médio prazo e bastante factível, não fosse a gestão fragmentada dos serviços de transporte urbano, entre Estado e Município, das metrópoles brasileiras e a falta de articulação institucional entre estas esferas de governo. Outros mecanismos, que exigem tempo maior para tramitação e aprovação pelos gestores públicos, poderiam ser vislumbrados passo a passo num prazo mais estendido.
No Brasil, foi visto que algumas iniciativas já visam à melhoria do sistema público de transportes urbanos. Porém, tais ações têm de se adaptar no tempo com a constante evolução das cidades e das formas de se locomover. Assim, será possível prover um transporte coletivo de qualidade capaz de atender a todos os setores da sociedade.
[1] Pesquisa Mobilidade 2012
[2] PDT-RJ 2015
[3] Ile-de-France Mobilités, 2017
[4] Ile-de-France Mobilités, 2016
[6] CPTM, EMTU, METRÔ e SPTrans
[7] FETRANSPOR
[8] O automóvel financiando a ciclomobilidade.
[9] O Uso da CIDE Para Custeio do Transporte Público Urbano (IPEA, 2016)
[10] Emenda Constitucional 90 de 2015
[11] Transporte urbano e inclusão: elementos para políticas públicas (IPEA, 2003)
[12] Transporte público coletivo: discutindo acessibilidade, mobilidade e qualidade de vida
[14] Gastos das famílias brasileiras com transporte urbano público e privado no Brasil: uma análise da POF 2003 e 2009, IPEA
[15] Pesquisa Orçamento Familiar 2008-2009, IBGE
[16] Les comptes des transports en 2016
[17] Observatorio de Movilidad Urbana, Resumen Ejecutivo 2015-2016
[18] Taxas de câmbio de 14 de setembro de 2018. Fonte: www.xe.com
[19] Os exemplos possuem alcances territoriais distintos. Porém, na escala metropolitana, as tarifas são, muitas vezes, baseadas na distância percorrida ou por zonas, o que tornaria mais complexa a análise.
[20] Trilhos = metrô ou trens metropolitanos ou metrô+trens metropolitanos
[21] Metrô+ônibus municipal é a combinação mais cara entre “trilhos” e ônibus municipal. Trens metropolitanos+ônibus municipal custa R$ 8,15, e trens metropolitanos+metrô, R$ 8,50.
[22] Guia Trabalhista: Vale Transporte
[23] Os vários impactos do bilhete único em São Paulo e na sua região metropolitana